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BICICLETA

    Hoje eu fui até Charqueadas pedalando. Foram 80 km até uma festa de aniversário. Eu não precisava, mas uma semana antes eu havia decidido que iria de bicicleta. Porém, no dia eu procurei desculpas para não ir. Eu queria ir, e estava até decidido; passei a semana inteira planejando a rota e conhecendo o trajeto. Mas no fundo, eu sentia um receio, pois sabia que era perigoso, ainda mais porque eu percorreria parte do trajeto já à noite. Então, eu usava a possibilidade de chuva como uma carta na manga e uma desculpa preparada caso eu desistisse e, ao invés disso, poder pegar carona com um amigo que iria de carro. Quando amanheceu o dia, eu estava disposto, e me levantei ainda com o pensamento de que iria fazer a tal aventura.

    Conforme as horas foram passando, eu sentia que ficava um pouco apreensivo. Será que valia mesmo a pena? Lembrei então de quando eu pedalei na autoestrada pela primeira vez. A primeira vez que andei com a minha bicicleta foi percorrendo uma distância de 50km na véspera do ano novo, atravessando quatro cidades para chegar à casa de um amigo, que claramente duvidou quando eu disse o que faria, e como eu iria. Eu não era acostumado a esse tipo de pedal, e aquele dia aprendi a dominar a bicicleta e não ter medo de andar junto aos carros. Mas o detalhe é que eram estradas muito bem conhecidas por mim, e também foi à luz do dia. Mas eu fui, e obviamente cheguei lá exausto, mas extremamente realizado.

    De lá para cá eu havia andado cada vez mais, e principalmente com maior frequência. Isso me fazia ter consciência de que eu estava mais preparado fisicamente. E realmente eu estava. Porém, essas novas estradas eu não conhecia, não conhecia nem o lugar aonde eu estava indo. Os únicos detalhes que eu sabia descobri através do Google Maps quando passei a semana planejando a rota. Mas olhar o trajeto no mapa não é a mesma coisa que andar de fato na estrada.

    O dia foi corrido, e até uma hora antes de partir, eu ainda não havia decidido se iria mesmo de bicicleta ou de carona. A previsão de chuva adiou algumas horas no relógio, então essa desculpa já não era mais válida. Lembrei então que eu estava tendo a mesma sensação que tive na primeira viagem que fiz, lá no ano novo. Essa nova viagem era um desafio que eu queria propor a mim mesmo, mas como em tudo na vida, nosso cérebro as vezes tenta nos autossabotar, criando desculpas e empecilhos toda vez que algo novo surge. Então dei um basta na indecisão e resolvi apenas ir e acabar com a enrolação. Adianto que foi a melhor decisão que eu tomei nos últimos tempos.

    Fui. Ansioso para descobrir como seria a viagem, tive tempo apenas de passar em uma oficina para calibrar os pneus. Depois disso liguei o GPS no celular e me misturei com o trânsito na autoestrada. O início eu sabia, mas chegando na ponte que saía da cidade e cruzava o Guaíba, olhei e percebi que era a primeira vez que eu estava passando lá em cima sem que fosse de carro. Lá era possível sentir o vento me empurrar para o lado, a bicicleta sofria uma ação muito maior do vento devido à altitude, cada caminhão que passava era como se fosse um ventilador empurrando para longe uma poeira. Ironicamente, uma sensação muito boa, talvez por causa da adrenalina. O sol estava quase se pondo, e minha animação estava nas alturas. Mantive a cadência com um ritmo constante, e fiz a primeira parada logo depois de chegar na cidade vizinha para tomar água. Nesse momento já estava escuro: liguei as duas lanternas da bicicleta, comi meia barra de chocolate e segui adiante. O trânsito estava bem constante, até eu pegar o primeiro desvio na BR, quando este passou a ser menos intenso. A estrada e o acostamento estavam surpreendentemente muito bons, mas não havia iluminação alguma. A única iluminação que havia eram as luzes das minhas duas lanternas frontais e traseiras da bicicleta, e os faróis dos carros ou caminhões, quando estes passavam por mim. Nesse momento eu já estava pedalando há duas horas, o sol já havia se posto há um bom tempo, minha animação estava bem alta e eu não estava nem um pouco cansado. A pista era simples, nos dois sentidos, e o espaço do acostamento me permitia andar com uma boa distância de segurança dos carros que passavam ao meu lado. Ao redor havia apenas campos, e nos minutos que não havia trânsito algum era possível até ouvir alguns animais se deslocando no escuro. A essa altura meu fôlego ainda estava firme, porém minha virilha começava a incomodar devido ao longo tempo de pedalada ininterrupta. O trajeto até ali havia sido basicamente estradas planas, com levíssimas subidas. Eu começava já a fazer pequenos jogos mentais para me auto incentivar a continuar, como por exemplo: olhar o ponto de luz mais distante e dizer a mim mesmo que eu iria descansar por alguns minutos apenas quando chegasse até ele. Funcionou, pois cada vez que eu chegava no tal ponto de luz, eu seguia sem parar até o próximo, e assim por diante. 

    Eu finalmente parei quando vi a primeira placa no segundo desvio que peguei da BR dizendo que Charqueadas ficava naquela direção. A partir daquele ponto, eu estava completamente sozinho na estrada, já não passavam mais carros e não havia iluminação alguma, uma escuridão total. Nesse momento então comecei a me preocupar, pois notei que se as baterias das minhas lanternas acabassem, eu simplesmente não poderia continuar. Primeiro porque eu não iria enxergar nada, segundo pois seria completamente perigoso caso algum carro passasse e eu estivesse sem sinalização. Concluí que iluminação reserva seria meu próximo item à minha lista de futuras compras.

    Aquele terceiro trajeto da viagem era o último até chegar a Charqueadas; a estrada continuava com pista simples nos dois lados, porém ainda com um bom acostamento. Os dois lados do caminho eram cercados por uma mata densa de pinheiros, de modo que eu não conseguia ver muita coisa, apenas um pequeno caminho no céu estrelado que seguia a direção da estrada. Eu estava sozinho.

    Foi justamente nessa solidão que eu me senti completamente livre. Eu não consigo descrever como é boa essa sensação, mas você sabe como é. Se não sabe, um dia saberá, em algum momento. Como eu disse, não havia luz alguma, apenas a luz das estrelas acima da copa das árvores, em um céu onde a lua não estava presente. Sem a minha lanterna não havia como enxergar absolutamente nada na estrada, uma escuridão total para os dois lados. Havia um silêncio que chegava a ser agoniante e ironicamente ensurdecedor, uma sensação maravilhosa. Qualquer som que eu produzia se reverberava de uma forma tão nítida. Em alguns momentos eu conseguia ouvir apenas o chirriar dos grilos no meio do mato. Naquela situação eu me enchi de uma felicidade gigantesca, senti vontade de gritar, e foi exatamente o que eu fiz. Foi como se nada no mundo importasse mais, exatamente como aquele velho clichê, de que todas as preocupações se esvaem junto com o grito. Funciona de verdade, mas tem que ser no momento certo, e se havia algum momento certo, com certeza era aquele. Percebi então que não importava mais onde eu estava, poderia ser qualquer lugar do mundo, mas o fato de eu estar sozinho, sem nada nem ninguém, me fez sentir não mais numa solidão, mas numa solitude. Há uma grande diferença entre esses dois termos. A solidão é um sentimento de vazio, da falta de alguma coisa para se sentir completo, é um sofrimento, por assim dizer. Mas a solitude é um sentimento de reclusão, de introspecção, voluntário ou não, porém não associado ao sofrimento. Basicamente é o sentimento de gostar e se contentar apenas com a nossa presença, sem sentir a necessidade de algo além de nós mesmos para nos sentirmos completos. Naquele momento, na escuridão da estrada e no meio do nada, eu não precisava de mais nada, foi como se minha mente simplesmente relaxasse. Eu fiz uma pequena pausa nessa hora, parei a bicicleta em um canteiro próximo a algumas árvores e fiquei um tempo olhando para o céu. Não vou tentar escrever o que senti no momento pois eu não conseguiria. De todas as coisas que eu tinha na cabeça ultimamente, tantas preocupações, desilusões, desperdício de energia em coisas que não valiam a pena, tudo se esvaiu. Eu perdi peso naquela noite, mas a maior parte dele não foi físico.

    Antes de continuar a viagem aproveitei para terminar de comer minha barra de chocolate e beber um pouco de água. Chequei o GPS e vi que faltavam mais 18 km, o que pra mim era uma maravilha, pois eu estava mais do que acostumado a fazer essa distância pelo menos quatro vezes por semana. Acontece que de toda a viagem, esse trajeto final foi o mais difícil! Talvez porque eu havia finalmente chegado ao meu limite depois de três horas e meia pedalando, ou talvez porque fiquei ansioso por estar tão perto. Olhei tantas vezes para o GPS nesse último percurso, que comecei a achar que ele não estava funcionando mais. Quanto mais eu pedalava, parecia que mais devagar o GPS se movia, não fazia o menor sentido! Depois de um grande esforço eu finalmente cheguei a Charqueadas, e o sentimento de dever cumprido foi extasiante, realmente único! Apenas algumas horas antes e eu nem tinha certeza se iria mesmo ou não. Fiz um registro meu e da minha bicicleta com o letreiro da cidade: dever cumprido!

    Eu disse antes que a decisão de ter ido foi a melhor que eu tomei em muito tempo. Por um triz eu não me deixei levar pela indecisão de ir ou não. Mas a verdade é que esse não é um texto sobre bicicletas, nem mesmo sobre cuidados nas estradas, mas sim sobre desafios, por menores e mais simples que eles sejam. Foi realmente um desafio, não importa a escala de fácil ou difícil que tenha sido, mas foi. É o que importa no final. E eu concluí.




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