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AS PERIPÉCIAS DE UM GAROTO ESTRANHO II

À LA CLARICE LISPECTOR

Deodor sempre foi visto como o mais estranho entre seus iguais, aliás não havia ninguém igual a ele. Ele sempre teve os mais bizarros sonhos, e uma de suas melhores habilidades era a de sonhar acordado. Desde criança, quando ia à biblioteca, agia como um “rato”, andando desordenadamente em meio a tantas estantes recheadas de preciosos livros, esperando sempre encontrar algum que nunca tivesse visto. Isso mesmo, visto, pois ele adorava, além de ler, olhar para os livros. Esse termo, rato, não fui eu que atribui a ele não, foi uma de suas professoras; “Deodor, o rato de bibliotecas”. Esse gosto por livros é o motivo de tamanha imaginação, a de sonhar acordado, pois de tanto ler já não sabia mais o que era real e o que não era. Muitas vezes quando acordava, continuava a sonhar; enquanto fazia sua rotina diária, dava prosseguimento ao que estava sonhando enquanto dormia. Certa vez, Deodor sonhou que sua família havia viajado para uma cidade que era cortada por um rio, e lá se divertiram muito. Aconteceram muitas coisas no sonho, como se uma vida inteira passasse em algumas horas, mas o importante é que nesse sonho tudo poderia realmente ter acontecido, não havia nada impossível. Quando acordou, quis se lembrar dos detalhes, mas quanto mais tentava, mais ele esquecia. Então perguntou à sua mãe: “Quando foi mesmo que voltamos de lá?”. Sua mãe o mandou arrumar o quarto para ele parar de falar bobagem, “Cabeça vazia, oficina do Diabo”, como ela dizia. Deste dia em diante, Deodor nunca mais fez perguntas sobre seus sonhos a outras pessoas, pois ele começou a confundi-los com a realidade.
Uma coisa que ele nunca entendeu foi o porquê de as pessoas dizerem que se concentram melhor com os olhos fechados. Na sua concepção, era muito mais fácil imaginar as coisas com os olhos abertos, pois com os olhos fechados não escolhemos o que imaginamos; pelo menos era assim com ele. Antes de dormir, sempre tentava escolher o que sonharia, se estaria em um campo, no mar, se estaria voando, correndo, fugindo de algum perigo, ou qualquer coisa, mas no final, salvo algumas exceções, sempre sonhava com algo não planejado. Não que isso fosse ruim, muito pelo contrário. O fato é que Deodor conseguia imaginar qualquer coisa acordado, e isso servia como um passatempo para ele. O problema era quando ele começava a imaginar bobagens, e a torná-las reais, em seu mundo. É aqui que começa a nossa história, depois de tanta enrolação.
Deodor nunca se importou muito com seus machucados, que eram causados por suas brincadeiras de moleque. Raramente usava remédios para curá-los: o tempo resolveria tudo. Mas sabia muito bem que, dependendo da gravidade do machucado, deveria contar aos seus pais. Assim, eles tomariam as medidas necessárias. Certo dia, Deodor estava brincado com seus amigos, quando caiu e bateu o peito no chão. Aquilo doeu um pouco, mas foi momentâneo, e como de costume continuou a brincar. Mais tarde, já em casa, notou que se tocasse em seu peito, sentia uma pequena dor. Percebeu, então, que havia uma espécie de caroço em seu peito. Ele sabia que esse era um dos casos que deveria contar aos pais. Mais tarde contou que sentia uma dor e um inchaço no peito.
Alguns dias depois seu pai lhe disse que iriam a uma consulta com o médico para verificar as dores no peito. Deodor já havia previsto isso e estava ansioso para rever a pediatra. Na manhã seguinte, foi acordado cedo por seu pai, e não via a hora de chegar ao médico. Ele adorava hospitais essencialmente por um motivo: elevadores. Quando pequeno, não foram poucas as vezes em que se perdeu de seus pais brincando de ascensorista. Passava horas subindo e descendo. O que mais gostava era sentir aquele friozinho na barriga. Quando tinha três anos, ficou com seu tio no corredor, esperando seu irmão que acabara de nascer. “Deodor, hoje você tem de se comportar. Seus pais estão na sala do parto com o seu irmãozinho”, disse seu tio. “O meu o quê?”, mas já era tarde, o garoto saiu correndo pelo corredor e esbarrou em uma enfermeira que logo simpatizou com ele. Quando seu pai o chamou para conhecer o bebê, o tio contou que ele estava brincando com a enfermeira.
Quando chegaram ao médico, Deodor e seu pai sentaram na sala de espera, até o horário marcado. Repentinamente, o garoto começou a imaginar que aquilo não era um hospital, era um hospício. E que, por vingança, seus pais o internariam ali. Mas foi interrompido por seu pai: “Deodor, fique aqui esperando o médico, quando for chamado é só você entrar na sala com ele. Eu vou conversar com um amigo que trabalha aqui”. O garoto assentiu e começou a analisar o local. Deu-se conta de que não estava sozinho, havia cerca de umas nove mulheres, entre 30 e 60 anos. O curioso, notou ele, é que todas o encaravam. “Oh não, elas devem ser as loucas internadas aqui”. Por instinto, começou gravar todos os detalhes da sala, quando notou uma coisa que o fez ficar paralisado. “Eu não estou em um hospício, nem mesmo no pediatra”. Na saída do elevador, havia uma coluna com um grande letreiro: “MAMOGRAFIA”.
Com sua mente aguçada, começou a pensar... E chegou a várias hipóteses. Eliminando as impossíveis, que eu nem me atrevo a contar, chegou a uma que, no fundo, foi a primeira que veio a sua mente. Deodor não sabia se tinha alguma relação com a queda, “talvez ela só tenha mostrado algo que já existia. Nesse caso, foi até bom”, mas tinha quase certeza que estava com câncer de mama.
Sim, eu também fiquei surpreso quando Deodor chegou a essa conclusão. Porém, nesse caso, talvez ele pudesse ter razão, afinal, o garoto lera em algum lugar que para cada 100 mulheres com câncer de mama, havia um homem. Deodor também sabia que a maioria dos homens com esse câncer, não procuravam ajuda por sentirem vergonha, e por medo de sofrerem preconceito. O garoto também sabia que a incidência do câncer de mama era maior em homens acima de 35 anos, mas que não era impossível casos com jovens com menos de 20. Ou seja, até agora eu não podia dizer que Deodor perdera os sentidos. “E se eu estiver mesmo com câncer? Como será minha vida?”. Essas perguntas eram repetidas inúmeras vezes em sua cabeça. De repente a porta do consultório se abriu e de lá saiu um doutor, que chamou pelo seu nome. O garoto nem precisou conferir, mas soube que todos os olhares da sala se voltaram em sua direção. Os poucos metros que o separavam da sala pareceram ter se transformado em quilômetros. Já dentro da sala, o médico pediu para Deodor contar o que havia ocorrido e também para ele tirar a camisa e deitar na maca clínica que havia no consultório. O médico então passou um gel no peito do garoto e encostou um aparelho utilizado para ecografia, enquanto conferia as imagens em uma tela de computador ao lado. Os dois conversaram sobre alguma coisa, mas Deodor já não prestava mais atenção ao que o doutor falava, apenas respondia com frases curtas. A única coisa que ele conseguia realmente pensar é o fato de não querer que ninguém o visse naquela situação, pois concluiu que mesmo se estivesse com algum problema, não ia desejar que as outras pessoas sentissem pena dele. Começou a tentar arrancar informações das expressões faciais do médico, mas não obteve sucesso. Ele sabia que somente com o seu pai presente ele saberia a verdade. Enquanto seu pai não chegava o doutor pediu para ele aguardar no lado de fora.
Outra coisa, porém, preocupava-o ainda mais. E se ele não conseguisse realizar todas as coisas que sempre planejou? Lembrou de todas as vezes que desejou algo e optou por não fazer pois ficou com receio ou achou que poderia deixar para outro momento. Imaginou se isso seria o que todas as pessoas que sabem que vão morrer pensam nessa situação. Não há como dizer que o garoto já havia aceitado sua condição, mas ele já começava a imaginar como seria sua vida a partir de então. Ele sabia de parentes com câncer em sua família e isso não era nada agradável. Ninguém deve saber quando vai morrer, pois isso tira a grande graça da vida: a  expectativa de viver sem saber o que nos aguarda.

E a resposta chegou. Com o maior alívio do mundo, ouviu o médico dizer: “Não é nada, apenas deve ter inchado por causa da queda”. Não era nada.


Texto publicado por mim originalmente em 01/05/2011, no site fufa2008.blogspot.com.

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